Doação de órgãos e tecidos ressignifica vidas e amplia rede solidária em Sergipe
Histórias, dados e informações ressaltam importância do Setembro Verde, campanha alusiva ao Dia Nacional da Doação de Órgãos
Ainda cercada de mitos e desinformação, a doação de órgãos e tecidos segue como um ato capaz de transformar vidas. É com o intuito de chamar a atenção para este processo que se realiza em todo o Brasil a campanha Setembro Verde, em alusão ao Dia Nacional da Doação de Órgãos, celebrado no dia 27. Em Sergipe, o número de doadores cresceu 15% neste ano em relação a 2022, mas ainda há um longo caminho a percorrer para que a fila de transplantes seja zerada.
Para chegar a essa meta, cada doação conta. Um doador de órgãos pode chegar a salvar, em média, oito pessoas. Se também for doador de tecidos, uma só pessoa pode ajudar até 50 receptores. E todo o processo envolve uma corrida contra o tempo. Órgãos como coração e pulmão, por exemplo, podem ficar até quatro horas, no máximo, fora do corpo. Para que a coleta e o transplante sejam realizados em tempo hábil, portanto, é necessário um acordo entre diversas instâncias.
Doação
Uma das partes mais importantes nesse alinhamento é a família do doador. Sara Rogéria Santos da Rosa, 46 anos, é professora universitária e uma entre nove irmãos. Três meses após a morte de seu pai, no dia 9 de janeiro deste ano, Sara perdeu seu irmão, o marceneiro José Robson dos Santos, de 53 anos. Após passar por um Acidente Vascular Cerebral (AVC), Robson sofreu uma parada cardiorrespiratória. Nesse momento, coube à família decidir o desfecho dos últimos momentos de vida de seu ente querido. Em um momento de dor, a opção de Sara, sua mãe e seus irmãos foi a de dar um novo significado à perda.
“Meu irmão teve morte cerebral, mas era saudável. Então, fizemos a doação irrestrita, de órgãos e tecidos. Tudo o que pôde ser aproveitado, foi doado, a fim de que outras pessoas tivessem qualidade de vida. Hoje, tem alguém conseguindo respirar por causa do meu irmão. Tem alguém com o coração batendo por causa dele. Tem alguém que saiu da hemodiálise por causa dele. Tem alguém que teve a oportunidade de continuar vivendo por causa do meu irmão. Isso não tem preço, não tem nada que possa ser superior a isso. Não tem presente maior”, considera a professora.
Ainda de acordo com Sara, a decisão da família seguiu o que Robson já havia manifestado em vida, além de cumprir um entendimento de seus pais e irmãos. “Minha mãe precisou de sangue na gravidez de Robson, e desde então entendemos a importância da doação. Meus pais nos ensinaram isso. E Robson era um doador nato, que dividia tudo e dizia que nada de material tinha importância. Creio que ele tem consciência, na eternidade, de quantas pessoas pôde ajudar, porque foi feito o que ele defendia. Minha mãe tem 88 anos. Ela enterrou o marido e o filho em um período muito curto, e não se arrepende da decisão. Ela pede que todos doem, e manifestem esse desejo. Ela também diz que, se pudesse, não hesitaria em doar”, resume.
Sara, que já expressou à família o desejo de ser doadora, detalha a atenção da equipe responsável pelo transplante. “A equipe é bem especializada. Os médicos permitiram que a gente fizesse nossa despedida e disseram como seria o procedimento. Eles se preocuparam muito com o estado da minha mãe e nos informaram sobre todas as etapas. Foi uma cirurgia extensa, e a cada órgão coletado, a equipe nos ligava e agradecia”, conta.
A irmã de Robson também salienta que o receio sobre o estado do corpo após o transplante, que preocupa grande parte das famílias, foi tratado com grande cuidado pela equipe. “Todos se preocuparam em nos dizer como ele ficaria fisicamente. A diferença foi quase imperceptível. Tiveram muito cuidado para que o corpo continuasse íntegro. A gente sabia da cirurgia, mas não tinha vestígio, visualmente. Ficou perfeito”, informa.
Números
Entre janeiro e agosto de 2022, Sergipe registrou 24 doadores de órgãos e tecidos. Em 2023, no mesmo período, foram 28. E ao longo do mês de setembro, já foram registrados três doadores no estado. Os números são da Central de Transplantes, órgão gerencial do Governo de Sergipe vinculado à Secretaria de Estado da Saúde (SES). A parte operacional, por sua vez, fica a cargo da Organização de Procura de Órgãos (OPO), que faz a busca ativa de órgãos e tecidos e acompanha os pacientes e famílias.
Ainda de acordo com a Central de Transplantes, entre 2000 e 2023, foram realizados 2.673 procedimentos no estado. De 2000 a 2013, quando a Central foi criada, foram 1.168, incluindo transplantes de córnea, coração, rim e osso. De lá pra cá, foram feitos 2.543 transplantes de córnea, três de coração, 112 de rins e 15 de osso.
Atualmente, o Estado está em fase de ajuste de contratos para a ampliação do número de instituições vinculadas realizando transplantes, já que a maioria dos órgãos captados em Sergipe é encaminhada a outros estados. Nos casos em que o receptor reside em território sergipano, ele viaja a outro estado para finalizar o procedimento, contando com ajuda de custo ofertada pela SES.
Ao longo de 2023, 18 doadores efetivos foram registrados em Sergipe. Isto significa que tanto houve autorização da família quanto a captação dos órgãos. Em outros seis casos, houve autorização da família, mas os órgãos não foram considerados viáveis. Ainda em 2023, até 31 de agosto, 99 transplantes de córnea ocorreram no estado. A fila, no entanto, é de 323 pessoas. O número demonstra o quanto a falta de informação ainda segue como um obstáculo para que mais pessoas sejam transplantadas.
“Hoje, temos uma espera para córnea de dois anos. É um procedimento simples, que leva em média 40 minutos para a captação. Para quem recebe, a entrada no hospital acontece pela manhã, e pela tarde já é possível sair. Nós deveríamos ter estoque de córnea, e não déficit, porque córneas são enterradas todos os dias. O que falta, portanto, é a disponibilidade das famílias em autorizar a coleta”, sinaliza o coordenador da Central de Transplantes em Sergipe, Benito Fernandez.
Novo olhar
Bruno Santana, 39 anos, é policial civil e viveu ainda no parto a descoberta de uma infecção neonatal que o levaria a um transplante de córnea. O primeiro transplante veio aos oito anos de idade, quando a desinformação sobre a prática era ainda maior. “Não havia muitas informações e nem costume de se fazer transplantes. E havia certo preconceito, porque as pessoas acreditavam que, quando o corpo fosse levado para o sepultamento, estaria deformado, sendo que isso não acontece”, relata.
Depois da primeira vez, Bruno passou por três outros procedimentos: um aos 22, um aos 32 e outro aos 39, há pouco mais de um mês. O policial descreve a sensação de receber uma nova córnea. “Imagine que você esteja em um quarto escuro. De repente, uma pessoa acende uma luz. Foi assim que me senti. Não é somente um ato de solidariedade. É um ato de dignidade, de cidadania. Você permite que o outro construa sua vida, trabalhe, interaja dentro da sociedade, abrace seus familiares. É algo extraordinário e indescritível”, opina.
O policial civil destaca, ainda, a necessidade de manifestar à família o desejo de ser doador de órgãos e tecidos. “Precisamos trazer as pessoas ao entendimento e informar às famílias. Antigamente, o código civil dizia que você poderia manifestar sua vontade e ser respeitado, tanto que essa informação era colocada na sua carteira de identidade. Porém, essa regra mudou. Quando você morre, quem responde são seus herdeiros, cônjuges, ascendentes, descendentes e irmãos. Por isso, você tem que manifestar à sua família a vontade de doar”, explica.
Tipos
Para cada transplante, há distinções em relação aos tipos de doadores. No caso de doadores falecidos, há aqueles em que o coração ainda está batendo, mas ocorre a morte encefálica. Desses, são retirados os órgãos. Há também aqueles em que o coração está parado, dos quais são coletados apenas tecidos, como córneas. Em ambos os casos, é necessária a autorização do cônjuge ou de parente até segundo grau para o transplante.
Há, também, os casos de doadores vivos. Nesse tipo, se o parentesco entre doador e receptor for de até quarto grau, não há necessidade de autorização judicial. Caso o parentesco seja em maior grau de afastamento ou não relacionado, a autorização é requerida. O Ministério da Saúde, no entanto, prioriza e estimula a realização de transplantes com doador falecido. A exceção são as doações de medula óssea, que só podem ser feitas por doadores vivos.
Para que o transplante com doador falecido seja realizado, é necessário seguir uma série de passos. O primeiro deles é o próprio diagnóstico da morte encefálica, seguido da entrevista com a família. Havendo a autorização, é feita, então, a triagem sorológica. O passo seguinte é a verificação de cada um dos órgãos. Verificada a viabilidade, o órgão é disponibilizado às equipes transplantadoras.
Mitos
Entre os mitos relacionados à doação de órgãos está o da integridade do corpo. Sobre o tema, o coordenador da Central de Transplantes explica: “a legislação brasileira determina que o corpo do doador não pode apresentar deformações em razão da retirada de órgãos e tecidos”. Outro mito diz respeito à coleta de órgãos ainda em vida. Nesse aspecto, Benito assegura que o procedimento só é iniciado após amplo diagnóstico.
“O paciente doador de órgãos falecido é um paciente que está em morte encefálica. Então, ele precisa estar em ambiente hospitalar e de um suporte avançado de vida, para que a gente mantenha seu coração batendo. O Brasil adota critérios rigorosos em relação ao diagnóstico. São feitas duas avaliações clínicas e um exame complementar para visualizar que o encéfalo não tem atividade elétrica, não tem metabolismo e não tem sangue circulante. Então, apesar de o coração estar batendo, a pessoa já não está mais viva”, sintetiza.
Mais um mito é a possibilidade de interferência na destinação. “É importante destacar que quem faz o cadastro do receptor é a equipe transplantadora, e quem faz o cadastro do doador é a Central de Transplantes. Existe um sistema informatizado de gerenciamento que faz o cruzamento das informações em busca de compatibilidade. E o processo é às cegas. Não tem como alguém ser priorizado na fila só por seu nome. E o ideal é que doador e receptor não se conheçam, para que não haja envolvimento emocional”, alerta o coordenador.
Divulgação
Segundo Benito Fernandez, a Central de Transplantes desenvolve projetos para motivar o surgimento de doadores e convencer famílias sobre a necessidade da autorização. “Temos o ‘Educar para doar’, em escolas, e o ‘É dando que se recebe’, em condomínios, empresas e associações de bairro. Mas isso é pontual. Precisamos de uma divulgação maior, no ‘boca a boca’. Avise sua família que você é doador. E você, familiar, permita que a vontade de seu ente querido seja respeitada. Seja solidário”, reivindica.
Fotos: Igor Matias | Secom
Publicado: 27 de setembro de 2023, 11:55 | Atualizado: 27 de setembro de 2023, 11:55